quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Teremos de aprender a estar "à espreita" no novo espaço público chamado "Facebook"?





Teremos de aprender a estar "à espreita" no novo espaço público chamado "Facebook"?
O principal efeito do Facebook, e de outras relações públicas mediadas pela rede, é a confusão que cria nas formas tradicionais de espaço público. Será um espaço privado? Será um espaço público? Há quem diga que o espaço privado está a ser invadido, violado não só por pessoas individuais mais agressivas mas também pelo Estado e pelas empresas, usando de forma mercantil a informação pessoal que os utentes disponibilizam publicamente.  Faz sua a distinção entre público e privado em nome das liberdades individuais e o direito à privacidade. São os que partem da racionalidade burguesa do século XIX:
Por outro lado, parece-me que há ainda pessoas que vivem um pouco no tempo anterior à revolução francesa. São os considerados "ingénuos". Aqueles que se despem aparentemente em público, de uma forma romântica, tentam de forma ingénua regressar a um tempo em que esta dicotomia não fazia sentido. "A representação pública não era discernível da representação privada" (Guedes, p. 2). Ainda é o caso de algumas comunidades rurais em Portugal

 

Como o mostraram os historiadores, a emergência da separação entre um espaço privado e o público é recente surgindo com a forma de vida instaurada pela burguesia no século XIX.
"Na Idade Média, não havia separação entre as esferas pública e privada, já que não ocorria a discussão pública - a representação pública não era discernível da representação privada. O conceito de representatividade pública vinculava a autoridade ao senhor feudal, ao rei, ao sacerdote. Estava relacionado, portanto, ao cargo, aos atributos da soberania, à hereditariedade, ao status da pessoa e não a um setor social (Habermas, 2003)." (Guedes, p. 2)
Creio que o Facebook, encarado pela grande maioria como o seu espaço privado, assume, por vezes, formas de espaço público aberto e plural, espaço de reciprocidade semelhante ao que se sentia nos cafés e tabernas de Paris nos tempos que antecederam a revolução francesa.
"A esfera pública burguesa, portanto, constituía-se no locus de exercício da problematização e da crítica de atores livres contra o poder do Estado, com a finalidade de pressioná-lo e de interferir nas decisões sobre as políticas públicas, em direção aos anseios, expectativas e interesses universais. Através do diálogo e do confronto de diferentes argumentos e pontos de vista entre as pessoas privadas (proprietários) reunidas em salões e cafés, os assuntos de interesse geral discutidos, até então monopolizados pela Igreja e pelo Estado, adquiriam caráter público." (Guedes, p. 3)
Se recuarmos mais um pouco no tempo, podemos recordar o espaço da praça, do centro da aldeia ou tribo onde eram, de forma colectiva, oralmente divulgadas e comentadas as recentes novidades. Neste caso não havia uma separação entre público e privado. Curiosamente, segundo Pierre Clastres, nessas comunidades tribais ditas "primitivas", havia uma reciprocidade na relação entre os eleitos e a comunidade. O sentido de humor, o mostrar o ridículo do poder, era uma das formas preferidas para manter essa reciprocidade que era obrigatoriamente aceite pelo poder instituído, anterior ao Estado Moderno. Muitas investigações de antropologia confirmam esta reciprocidade na relação entre as chefias políticas e as comunidades. De algum modo, as festas associadas ao Carnaval em Trás-os-Montes, em Portugal, recordam esse tempo.
Num tempo actual em que o poder é cada vez mais global, fugindo ao controlo dos Estados-Nações e das empresas, reforçar o espaço público na tecnoesfera é afirmar a continuação desta reciprocidade terapêutica essencial.

 

De algum modo, subverter a separação entre público e privado como sucede em algumas páginas de pessoas ligados ao mundo da criação estética (ver, como exemplo,  o facebook de Vítor Rua).
É necessário aprender a estar à espreita, um golpe de vista: distinguir, no meio do ruído, as melodias, como sugeriu Henri Bergson. 
"Estar à espreita: um movimento flutuante [...], uma concentração desfocada, para poder operar a suspensão de juízos prévios como processo de problematização no acompanhamento dos movimentos atuais e virtuais. Destaca ainda que, nessa atenção suplementar, há uma inversão do fluxo cognitivo habitual, portanto, desdobra-se no alargamento da percepção, deslocando os interesses de quem percebe, havendo uma consequente apreensão direta do objeto."

 

Dolores Galindo e outros. "Intuição para Bergson e Deleuze: atravessamentos por devires da pesquisa em Psicologia". Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 21, Número 2, Maio/Agosto de 2017: 277-283. Acedido em: https://www.scielo.br/pdf/pee/v21n2/2175-3539-pee-21-02-00277.pdf ) 

Não existem receitas infalíveis mas os caminhos já não são os mesmos do século XIX. "A saturação de modos de vida e da própria política está criando outras linhas e trajetos" diz Paulo Ricardo Bittencourt.  
Em grande medida, a rede da experiência confusa da tecnoesfera cria condições para esse salto para uma consciência da biosfera a da noosfera, usando os termos do antropólogo mexicano José Arguelles.
"Daí a necessidade de pôr em marcha "todos os sentidos". Ter o ouvido, o ruído do mundo que pode ficar amortecido pela barulheira político-social cara à superficialidade mediática. Aliar isso ao golpe de vista, esse aprendizado do olhar que sabe reparar o essencial em meio a montoeira de fenómenos adjacentes e secundários." (Texto extraído do Livro "Saturação" de Michel Maffesoli, p. 98). 
O pensador português Hermínio Martins sugere mesmo que, perante a mobilização tecnológica actual, se deve ver a estética como um campo de resistência à nova teologia tecnológico e económica que se globaliza cada vez mais. 
Na verdade, Hermínio Martins "desenvolve contribuições brilhantes sobre a reflexão estética e as tendências artísticas contemporâneas, motivado pela conjugação desses domínios com a inovação tecnológica, neles surgindo o princípio da Plenitude como uma chave interpretativa" (Garcia, p. 25).


Notas
Como exemplo, no Facebook, de uma nova forma de "estar" no espaço público do Facebook, ver a página do músico Vítor Rua.
Texto citado: Éllida Neiva Guedes, "Espaço público contemporâneo: pluralidade de vozes e interesses", in https://www.academia.edu/771586/Espaco_publico_contemporaneo_pluralidade_de_vozes_e_interesses 
José Luís Garcia, "Introdução: razão, tempo e tecnologia Hermínio Martins" in http://www.adelinotorres.com/sociologia/Jos%C3%A9%20Luis%20Garcia_Introdu%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0%20obra%20do%20Prof%20Herminio%20Matins.pdf 
Hermínio Martins, «O princípio da plenitude artística, a ciberciência e a condição pós-histórica da arte», in Miguel von Hafe Pérez e Susana Sameiro (coord.), A Experiência do Lugar: Arte e Ciência, Porto, Porto - Capital Europeia da Cultura, 
2001, pp. 50-71. 
Livros que recordei: Michel Maffesoli "Saturação" e "O tempo das tribos"; Pierre Clastres "A sociedade contra o Estado", Jurgen Habermas, "O espaço público"; José Arguelles, "O Factor Maya".  
Escrevi  sobre a "tendência estética política" em: http://interact.com.pt/20/aceleracao-esteticista/ 

 

Revisto em 15 de Janeiro de 2018.